Desdobramentos: homens do subsolo

Luna Estrella Lopes
9 min readApr 20, 2022

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Um ensaio sobre o que pode existir da intelectualidade entorpecedora à ação agressiva mais encerrada em si mesma quanto possível

“No, because I have no fear to feed you with. No fear to give you and I will prove it. Sing for me like you once did as the river caught your tongue. […] You’re not here. You are not here. I have no fear for you and I have no guilt for you. I did as others did and as others had me do, and we are all owned, and we have all owned others… so don’t you dare stand there and judge me. Today, I have work to do.”

Taboo, James Keziah Delaney — Season 1, Episode 1

A reflexão que trago tem origem em Memórias do subsolo, de Dostoiévski. Começo com a personagem central, o homem do subsolo, e chego até James Keziah Delaney, personagem fictícia e central da série televisiva Taboo.

O homem do subsolo entrega-nos sua lógica nauseante em que, ao final, são separados homens de ação dos homens intelectuais. Mikhailovitch descreve, com eficácia absurda, os pormenores da mente de um homem demasiado intelectual e com raciocínio analítico muito bem desenvolvido e praticado; porém, junto a estas poucas qualidades e, através delas, nos é apresentado um homem de caráter vil e sua sinceridade acerca do que pensa sobre si como indivíduo nos dá a impressão de ser grande e aberta apenas por estar disposta de modo lógico, uma vez que a verdade mais latente é negada por ele na maior parte da história e essa é a abrangência de seu ego bestial disfarçado por seu teor intelectual e falsa modéstia exacerbada.

É um homem que se admite doente e com grande raiva, mas nunca se trata e tampouco encontra meios de canalizar sua raiva. Não tenho interesse em tratar aqui muito dos aspectos sexuais de ambos, mas a agressividade, a violência e suas canalizações muito me interessam. Até dissertarei sobre alguns modos como tratam mulheres, mas não me aterei às vidas sexuais e sim ao aspecto afetivo dos contatos estabelecidos.

O homem do subsolo é extasiado constantemente em seu gozo intelectual e crê que todos os homens intelectuais devem sofrer desse mal, pois o homem de ação, para agir, deve abandonar a torrente de perguntas, respostas e conclusões engendradas umas nas outras e puxadas pela existência de um raciocínio após o outro quando se ignora a existência de verdades autoevidentes e de estruturas axiomáticas — esta última, em caráter mais aristotélico. Este homem sente-se pouco, pequeno e tem noção da sua nulidade social, tanto positiva quanto negativamente.

Ele tanto é incapaz de despertar felicidade em alguém quanto também é incapaz de prover o gosto do ódio a algum indivíduo. Porém, sua análise quanto a isso está voltada para um universo com recorte social e de gênero bem específico; quando ele fala de seu impacto nulo em relação aos outros indivíduos, esses outros indivíduos são todos homens e de uma classe social semelhante a dele ou mais alta que a sua. De fato, estes homens não o veem e suas tentativas frustradas de exercer ação sobre eles em nada os afetam.

Este homem, afetado por não afetar, instintivamente guiado por sua covardia e comodidade, volta-se para a saída mais primitiva para canalizar sua mágoa e raiva: atingir um ente mais fragilizado e reafirmar ilusões de autoridade e realização. Os entes mais próximos e fragilizados configuram-se como seu servente, com o qual existe uma canalização mais pulverizada, diluída, e Liza, a personagem feminina central, com a qual a canalização é direta e ganha materialidade mais evidente por meio da fala, uma fala de cunho depreciativo da figura feminina e sobre como está exercendo sua sexualidade, o que se configura como uma das agressões mais antigas da história humana, derivada dos traumas físicos primários da nossa interação e com desdobramentos psicológicos individuais e coletivos que podem gerar travas em todo o desenvolvimento psicossocial de uma nação, o assassinato e o estupro.

Sua capacidade intelectual e analítica nada realiza a não ser o exercício próprio do niilismo e o desdobrar metafísico de parte desse processo niilista ou a aura gerada de elementos desencadeados dá origem à distribuição de sentimentos de natureza triste, melancólica e depreciativa, inclusive para ele mesmo. A única clareza que existe nele é a que está no processo de desenvolvimento do seu método lógico de deduções, mesmo que o leve à conclusão de verdades convenientes e por demasiado relativizadas, que, por sua vez, o levam à atitudes mais sintetizadas e reconhecidas coletivamente como clichês de um homem de raciocínio pouco desenvolvido, ideais pouco nobres e de caráter tecido com pilares em covardia.

Entre a paralisia e o agir, o homem do subsolo não desenvolve, em suas conclusões ou pseudoprojetos, os papéis da variável tempo e dos quesitos fluidez e pluralidade em relação aos conceitos de ação e agressividade. Ao refletir sobre este modo cíclico de envenenamento, paralisia e ludibriação do homem do subsolo, me veio à mente uma figura masculina, que também muito me interessam seus processos intelectuais junto aos desdobramentos psicossociais e inerentes à materialização de seus intuitos em ações. Seu nome é James Delaney.

James condensa, em si, uma fusão — com ampla licença poética — de Charles Marlow e Sr. Kurtz— Heart of Darkness, de Joseph Conrad — e soa como um protesto intrinsecamente contraditório contra a própria imagem e origem, a sociedade inglesa do século XVIII-XIX, uma sociedade com muitos homens do subsolo, que, além das disposições mentais de nosso alegórico subsolo, detinham grande poderio econômico e político, o que torna o potencial de devastação ainda maior.

Ele volta do Continente Africano para a Londres de 1814. Ao Continente Africano ele foi, cerca de uma década antes, como agente de opressão, degradação e colonização, como um profundo conhecedor e aplicador da ação de caráter maligno, nefasto, como ele mesmo o admite por diversas vezes, “- The Leviathan of the seas, is it? The terrible shadow. The beast with a million eyes and a million ears. Conquest. Rape. Plunder. I studied your methods in your school. And I do know the evil that you do because I was once part of it”.

James fundiu o homem de ação ao homem intelectual. Entendeu que é necessário estabelecer um ciclo de fluidez contínuo entre atividade intelectual e a ação e também que elas são atividades que, quando ordenadas em sistema de retroalimentação e permitidas a funcionar deste modo por tanto tempo quanto for possível, surge, no processo, a variável experiência e ela se torna o elemento que, analisado, permite o aprimoramento do processo enquanto ele torna a se repetir e gerar mais insumos plurais de experiência a serem analisados e transformados em mais bases diversificadas para tomada de ação.

Em relação à experiência propriamente dita, quando analisada friamente e não relacionada com nada de forma ética ou moral, James teve o privilégio de transitar do ato mais vil ao planejamento de ações dos ideais mais nobres e, assim, a vida o possibilitou, ao bater o martelo da injustiça no ecoar do caos que rege o mundo; é um homem impune, disso não existem dúvidas e aí está a sua ligação concreta com os aqui chamados homens do subsolo: como dito, ser agente da degradação imposta do exercício próprio do niilismo e do desdobrar metafísico que esse processo pode acarretar. James tem muito do Übermensch desenvolvido em Raskólnikov e crê-se também merecedor de um julgamento reservado aos extraordinários.

Ainda no Continente Africano, James aprendeu a se comunicar através da língua Twi e também se dedicou aos estudos do ocultismo e magia de matrizes africanas. O exercer desse ocultismo e seu caráter gnóstico de acesso ao inconsciente possibilitam a James um trânsito absurdamente plural de maneiras intelectuais e emocionais de conceber informações e suas utilidades.

O desdobramento mais evidente da desassociação de James com o homem do subsolo intrínseco em sua formação como indivíduo é a canalização de sua agressividade. A agressividade de James não serve mais à barbárie encerrada em si mesma e sim à eliminação direta dos que medirem forças com ele no caminho para alcançar seu objetivo. E, sobre seu objetivo, Delaney separou tudo o que estava dentro de si, o que era podre do que poderia gerar frutos: voltaria à Londres, tinha pendências de homens do subsolo a serem resolvidas e, depois, partiria para Nootka Sound para viver a extensão do existir de sua mãe. Com ele, levaria os homens e mulheres de ação que o ajudassem a burlar as exigências da Companhia das Índias Orientais e dos Americanos.

James defende a memória de sua mãe e sempre denuncia a opressão e mercantilização dela feita por seu pai, embora não saibamos o caráter exato da opressão que exercia ele mesmo sobre outras mulheres e se de fato exercia. Essa ode à mãe morta parece um meio de aspiração ao ser e exercer melhor e esse teor de evolução e salvação espiritual é materializado na figura feminina tanto em Liza, no romance de Mikhailovitch, como em Salish, mãe de James.

O exercer de James também envolve o estar num lugar mental não civilizado de existência, nos lugares animalescos, onde o mal estar social freudiano não o atinge e seus pensamentos podem ter conclusões instintivas e, sua agressividade, manifestação não contida. Sua agressividade se materializa partindo deste lugar mental de bestialidade pura e fica em contraste com a forma de ilusória polidez cívica que contorna a mesma agressividade concebida pelo chamado homem civilizado.

Esta bestialidade confere uma imanência, uma latência da característica primeira do ato violento, que é encerrar-se em si mesmo, independente das cadências de raciocínio que o gerem ou que possam surgir deste. James, diferentemente do homem do subsolo, admite a pluralidade do homem, o trânsito do intelecto à bestialidade, a antinomia sempre incômoda e relacionada às possibilidades de capacidade da raça humana.

“A noite não é menos maravilhosa que o dia […] ela tem revelações que o dia ignora. A noite tem mais familiaridade com o mistério das origens do que o dia.” (BERDIAEFF, 1936, p. 91).

Embora escrita em diferente contexto, ao discorrer acerca da agressividade humana, é muito válida e aplicável a afirmação de Berdiaeff em relação às fontes espirituais dos tempos modernos. Essa configuração que concebe incômodo quando é necessária a relação com a bestialidade é danosa e, especificamente, ocidental e européia, colocada em voga desde o complexo legado, já corrompido, que o catolicismo postulou ao cristianismo e, posteriormente, desde a ruptura com a natureza instintiva a partir da supervalorização do cartesiano postulada por Descartes, com auge instaurado no florescimento do protestantismo norte americano.

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A ignorância proposital da esfera trágica se faz necessária para a fluidez do ato agressivo. Por outro lado, essa esfera trágica moderna pode se transmutar em muitas configurações. Os Waitaká, oriundos do tronco linguístico Macro-Jê, consumiam carne humana e esta era inserida em sua alimentação cultural diária. O outro não era um igual; se o fosse, não seria alimento. A despersonalização daqueles que estão fora do bando também interage de maneira muito interessante com a estética ornamental do grupo, que contribuía para que o reconhecimento como indivíduo fosse atribuído somente aos seus pares.

Takuan Soho, monge Zen Budista da escola Rinzai, que praticou a consagração de seus atos e ciclos ao caminho Zen, incluiu, neste caminho, desde o cultivo de flores até a técnica da espada e a preparação mental para utilizá-la, formulando — senão a primeira, uma das — mais consagradas associações da marcialidade com o caminho espiritual no Japão. Ele a chamou doutrina Mushin.

Em nominologias de base ortodoxa, que assumem parâmetros bem definidos de bem e mal, ainda há o próprio Fiódor Dostoiévski, que admite a pluralidade do espírito ao mostrar que a verdade intrínseca à personalidade humana, o esplendor da graça divina, somente pode ser vivido através do arrebatamento e este só é possível se o mal é reconhecido como inerente ao ser humano, que escolhe exercê-lo ou não através do dom divino a ele concebido por Deus, a liberdade.

Confesso que ainda é complexo, para mim, encaminhar um texto deste cunho — ensaístico e, em certa medida, um exercício filosófico — para as suas considerações finais. Uma proposta de sumarização para este escrito de caráter aberto é a de que as variáveis tempo, fluidez e pluralidade, discutidas acima através de suas relações com a agressividade, podem ser inseridas nos conceitos de ciclo e instinto dos sistemas micro e macro de funcionamento humanos. Mais intrínseca ainda à humanidade, há a inteligência instintiva. Tirando estes aspectos, há apenas a automação. E sabemos que a automação é destinada à servidão. De Tebas, a “Decifra-me ou te devoro”, esta afirmação tão severa e que, de forma alegórica, parte do universo para o ser humano, é subestimada pelo homem do subsolo quando ele crê que o “conhece-te a ti mesmo” seja apenas uma questão para o intelecto.

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