Herzen, Proudhon e o ideal familiar

Luna Estrella Lopes
3 min readAug 19, 2021

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O ideal de Proudhon tem a família como primeira célula da sociedade e, em consequência disso, deve ser o primeiro berço da justiça, da busca da purificação e delimitação das paixões; os pilares para a formação de uma civilização. Com o cristianismo, os laços rígidos tornaram-se possivelmente solúveis, colocando a família em prol do indivíduo e não o contrário.

Proudhon postula que o filho, enquanto vivo o pai, não detém posse sobre sua vida, o que também revela uma maneira de centralização de bens e heranças. Todo casamento, na verdade, existe em função da vida política, do trabalhar para comer e do comer para trabalhar; não impera o amor.

Com foco no trabalho, fundamentando que toda a crença acerca do assunto converge para que toda a energia do indivíduo se converta em trabalho, não há espaço para as miudezas da vida, para as artes, para os sentimentos. Há a ilusão de uma liberdade individual adquirida, mas não se reflete que o direito à iniciativa na qual essa dita liberdade individual se converte é apenas uma ferramenta de manutenção de um sistema vigente, não um engrandecimento pessoal. Toda a iniciativa citada se converte em atividade política, em atividade de retroalimentação de um Estado.

A família ideal de Proudhon prega a submissão de todos os seus integrantes, entretanto destaca-se a submissão feminina, uma vez que não há apenas a subserviência ao Estado, mas também ao seu marido. No extremo oposto reacional, desenvolve-se o império da paixão que pode beirar o desgoverno. Em figuras femininas, refletem-se nas imagens da mulher completamente submissa e a mulher que detém a falsa liberdade escrava de suas paixões e também cultivando seus escravos apaixonados.

A repressão das paixões é um artefato similar a uma bomba-relógio, uma vez que acionada, põe abaixo tudo o que era pilar de construção; toda a família rígida e justa se funda na repressão das paixões. A única paixão não amordaçada é o ciúme que, não só não é reprimido, mas também é incentivado; torna-se quase um dever, uma virtude; sua manifestação dá direito à existência do julgamento e da vingança. Tem-se o ciúme por tão irredutível quanto o amor. A eliminação do ciúme implicaria na não existência do amor ao indivíduo, mas do amor ao sexo; uma vez que as emoções são, por seu caráter, pessoais, a troca não atinge sua eficácia.

Enquanto houverem extremos no conceber dos ideários das relações sexuais e conjugais, haverá a ilusória tentativa de reduzir esses encontros de natureza tão plurais a meros acontecimentos petrificados.

Existe, também como uma das variáveis acerca do casamento, o advento da fé religiosa, que isenta o indivíduo de qualquer responsabilidade. O casamento no cristianismo é muito bem comparado com o concubinato, entregando toda a dignidade e humanidade da mulher nas mãos do marido para que ele faça o que bem entender com elas e, em parte significativa das vezes, ambas são erradicadas. Após o cerimonial religioso, as nuances existentes são substituídas por dever e obrigação. Há a conversão da maior gama de sentimentos puramente em pecado. É célebre a figura da mulher infeliz. De tão célebre, passou a ser tema artístico; os cantos e lendas de súplica, de, ao menos, piedade, absolvição; os romances e as representações teatrais, estas últimas com maior foco na denúncia da existência do papel de servidão no casamento.

Acima da variável religiosa, tornou-se mais articuladora de poder a esfera estatal, a criação do casamento civil. O casamento civil assegura o direito à propriedade e isenta o Estado da responsabilidade para com os filhos. Em contraste ao casamento por contrato, se erguem dogmas psiquiátricos e ideológicos, de infalibilidade e incapacidade perante às paixões. O amor irracional também é uma forma de retirada de responsabilidade. A mulher é culturalmente tida como detentora de maior sensibilidade que o homem, logo, mais suscetível às amarras do amor. Com menos acesso à educação intelectual e à maneiras de autogestão psicológica, a mulher, já culturalmente inferiorizada, torna-se também a maior refém das amarras ilusórias extremas. À mulher que tem maneiras de promover a autogestão psicológica ligada à realidade e o acesso a material intelectual, a sociedade oferece, quando nivelando minimamente, seu estranhamento e rechaço.

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