Sobre mosaicos de memória

Luna Estrella Lopes
10 min readJun 25, 2021

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A seguir, tenta-se fazer uma construção de pensamento que seja estrutura e aborde o conceito do que seria um mosaico da memória, com todas as imagens pertinentes e referentes a tal palavra, além de também a tentativa de tecer comentários não estúpidos ou redundantes – tentarei, com todo empenho – acerca do texto de André Bueno sobre Resumo de Ana, de Modesto Carone.

Um mosaico da memória é uma edificação complexa, com estrutura que creio não ser possível de se enquadrar em uma definição que não seja capaz de tolher seus aspectos e efeitos de retroalimentação, uma vez que é um processo vivo e constantemente em metamorfoses de poder absurdo na vida habitual de um indivíduo; Tornar suas memórias um mosaico, definindo de maneira bruta, metafórica e simplista, consiste em selecionar pequenas peças de memórias e fixá-las em uma parede plana de seu consciente, para que se forme uma imagem.

Porém, cabem algumas perguntas que escreverei aqui e infinitas outras: selecionam-se imagens conscientemente? Consciência: existe em toda a formação de um mosaico de memórias? Onde é fixada essa imagem pronta? Que é essa imagem, formada por pequenas outras? Que é esse espaço plano do mosaico, no qual ele se fixa? No que esse mosaico se estrutura? O que esse mosaico destrói? O que esse mosaico digere ou vomite? A que vida dão origem os mosaicos das vivências de um indivíduo? Perguntas talvez retóricas, individuais ou talvez até necessárias.

Talvez seja possível caminhar por algumas destas perguntas ao abordar o mosaico da memória feito pelo narrador em Resumo de Ana; na maioria das partes em primeira e às vezes em terceira pessoa, o contador da narrativa busca em suas memórias imagens e sentidos que possam, de certa forma, esclarecer passagens de dois familiares: sua avó, Ana Baldochi – nascida como Godoy de Almeida - e seu tio, Ciro, além de outros personagens que se agregam a estas memórias.

A estas figuras, digamos que, maiores e mais expressivas do mosaico – ou fios da meada, se preferir – juntam-se outros elementos, como outras imagens menores do mosaico e a massa grudenta e complexa que dá liga às peças – aqueles pensamentos que surgem, talvez, quando você está buscando algum outro que esteja soterrado por eles, ou algo como aqueles sonhos que você tem após decidir buscar o significado ou anotar os detalhes de outro determinado sonho. Em Resumo de Ana, além das partes pessoais – se é que existem partes que possam ser desassociadas da massa social – existem as memórias espaciais e temporais, geográficas, trabalhistas, políticas e econômicas.

A narrativa remonta à formação do Brasil moderno, século XX, vista do ângulo pertencente àqueles que se encontram, como disse André Bueno, na ponta pobre e precária do processo, na contracorrente dos mitos da modernização de São Paulo, capital e cidades prósperas do interior.

Encontra-se também na narrativa uma distância do material narrado, do que há de emocional nesse material narrado que, na verdade, parece um privilégio a ser dado para poucos, poucos esses que não se encontram nesta parte populacional amarga e cruelmente concreta – concreto, massa, massa esta também que dá liga para a sustentação da estrutura de “heróis” do processo histórico mundial.

Os processos de montagem são cuidadosamente interligados, uma vez que também, se não o fossem, creio que estariam condenados a serem carregados pelo ar, no espaço, diante dos olhos de todos nós, metade de indiferença e metade de ruindade, como diz José Saramago.

Simultâneo ao fato de que o trabalho temporal do narrador está distanciado do material emocional, ao ressaltar as marcas fortes da memória, se encontra o fenômeno que arrisco chamar de emocional entranhado, aquele mínimo que se pode manter para sobreviver sem enlouquecer completamente – será?

A realidade crua e sem meados que a enfeitem, de fato, necessita da loucura para ser balanceada; mesmo que você não cultive a sua, se alimenta da insanidade dos outros. O realismo tortura, o cotidiano patético mata, corrói o infantil humano – infantil é dito sem que se apegue ao sentido de infantilóide.

Sobre isso, em um de meus escritos íntimos, pus pensamentos acerca disso certa vez e tomo a liberdade de colocar parte desta reflexão aqui:

O amigo que eu não tive é o cão que há de baixo da minha mesa.
Que se encosta nas minhas pernas ao cair da noite, que me busca no caminho pelo qual eu saí, que torna as orelhas baixas ao ecoar pelo quarto o meu grito mudo de dor. 
E é o grito que ecoa no poço, em diferentes ressonâncias e por diversos eus e eles, aquele que o cão segue em busca do dono.
Do dono? 
Do não morrer sozinho.

Imagino que, quando necessário, põe-se de lado o cão, imagem representativa do consciente e correto, para que se dê lugar ao louco, à expressão da marca realista; diante do espanto e com o olhar ameno, ansioso e preocupado em relação ao seu “dono”, o cão só tem a fazer baixar a cabeça – não só por aflição de impotência, mas também por respeito. A marca realista que faz perder-se o cão também é o elemento que o traz de volta quando ele é necessário no processo equilibrante do existir. O traz para perto daquilo que o complementa. Parece ser verdade que a sanidade e a loucura - que expressa as marcas realistas - coexistem em complicado entranhamento e fissão.

Creio também que este processo de entranhamento e fissão é, em síntese, o material mais abundante na massa que dá liga às peças maiores de mosaicos individuais.

Em Resumo de Ana, o tempo se apresenta dilatado, porém, comprimido em espaços com ampla restrição, além de existir a apresentação condensada do século XX. São seguidos também os norteadores necessários à sobrevivência dos pobres, definidos por André Bueno como: lógica da vida material, do trabalho alienado, da dependência e do favor.

No livro, os surtos modernizadores são apresentados em mistura com marcas de passado rural, contrastes entre arcaico e moderno, nos quais estão precisamente situados os personagens, nos quais também relaciona-se pobres com fazendas e fábricas poderosas. Olhando através do estetoscópio precário do processo, é impossível e além de tudo desrespeitoso, fazer do progresso situação espetacular.

Acerca dos personagens, Ana Baldochi é filha de imigrantes europeus, nascida em 1887 no sítio familiar, mandada quando criança para crescer com Ernestina, de quem vem a ser empregada doméstica, mergulhada em rotina ordinariamente banal, exaustiva e cotidiana desde os cinco anos de idade. Trabalhará como empregada doméstica também em São Paulo, primeiro na casa de um professor e depois na casa de Mr. Ellis, funcionário de alto escalão na Light. Ana torna-se amiga de Judith, chegando assim ao posto de governanta, saindo com a família, aprendendo a imitar costumes de origem burguesa; a apreciação e ascensão imagética tornam-se sua linha de fuga do exaustivo trabalho doméstico, necessidade e violência conjugal. Porém, a dúvida de que a proximidade com posições sociais mais altas não serve de garantia nenhuma para mulheres pobres torna-se certeza quando Mr. Ellis vai à falência.

Ao voltar para Sorocaba, Ana se encontra novamente na posição de dependente, agora do marido, fazendo trabalho doméstico, porém insistindo veemente nos costumes burgueses de fuga para manutenção do mínimo fio de luz da sanidade mental equilibrante em meio a uma relação que caminha por entre os limites da necessidade e do vínculo afetivo – fugas estas muito mal recebidas por seu marido, que muitas vezes reagia com as mais diversas formas de violência.

A mãe do narrador, Lázara Dea, também chamada de Dona Lazinha, nasce após a perda de quatro filhos, época na qual os negócios do marido de Ana, Balila Baldochi, estão prósperos – período no qual ele também cede a fugas de cunho imagético e performático com objetivo de aproximação da burguesia, aproximação esta que se mostrará também como apenas uma ilusão muito bem vestida e chamativa quando Balila vai à falência durante a crise de 1929.

Balila passa a vender remédios em vilarejos e Ana se afoga em maior onda de necessidade, dependência e flacidez. Não se encontra mais capaz de fazer o serviço doméstico e depende dos filhos pequenos para comprar o que se transmutou em sua nova linha de fuga, a bebida alcoólica. Adoece e morre, vitima de depressão e alcoolismo. Da maneira esperada, contrapondo-se ao crescimento e enaltecimento do macro em relação à degradação do micro, da vida particular, sendo o contemporâneo a fazer contraste – e não o passado – após a morte de Ana, o centro industrial mantém seu eixo firme, segue indiferente.

Quanto a Ciro e Lazinha: aos oito anos, após ser tirado do primário, Ciro vai para o sertão trabalhar com seu pai; Lazinha e Zilda, sua irmã, vão viver com a madrasta de Balila Baldochi. A fim de não se tornar um estorvo passível de maior humilhação, Lazinha não se sente bem na posição de hóspede e coloca sua herança materna, o trabalho alienado ou doméstico, disposta para servidão.

A segunda parte do livro permite-se montar o mosaico a partir do ângulo de Ciro, que nasceu no ano de 1925, período, como já dito, próspero dentro da família. Mostra-se presente a esperança ilusória de um futuro promissor em decorrência da aproximação com o mundo das grandes famílias, fazendas e fábricas, ilusão mais uma vez brutalmente destruída pela violência, pelo abandono e pela doença. Aos três meses, em um passeio de carro para Itu, Ciro é picado por uma mosca varejeira, picada essa que acarreta na formação de uma bicheira em seu pescoço; o pai, Balila, recorre a um tratamento caseiro preparado por ele mesmo, com arsênico e cremes.

Com o nascimento de Zilda, última e mais nova filha do casal, Ciro encontra-se na posição de abandono, afastado da mãe e das irmãs e lidando com a ausência do pai. Quando não se fazia ausente, a presença do pai se sintetizava em violência doméstica em relação a sua mãe, Ana. Seguindo o caminho das desventuras, Ciro, pequeno, abandonado e com uma torcicolo mal curada, adquire catapora e uma lesão no olho, além de perder a mãe aos oito anos, final de vida este o qual acompanhou bem de perto, comprando bebidas em botecos para a mãe, afastando os outros meninos que faziam zombaria com uma mulher já frágil, doente e bêbada.

Ciro vai então morar na casa de uma tia, mas não se adapta aos costumes severos, partindo com o pai. Até os quinze anos, Ciro andava pelo sertão de Iguape com seu ele. Consegue seu primeiro emprego de balconista de farmácia aos dezesseis anos, devido a um intermédio de seu pai.

Enquanto o centro econômico São Paulo crescia em passos de modernização mundial, Ciro passa pelo bordel e em seguida o destino o guia para a delegacia e depois para o reformatório. Depois da Segunda Guerra Mundial, Ciro vai trabalhar na Estrada de Ferro Sorocaba, deixando o balcão da drogaria. Logo na primeira leva de demissões, Ciro é dispensado, destruindo-se assim também o cálculo que chegou a resultados que mostravam o emprego como estável.

Após o acontecido, aceitou o emprego como garçom de bar. E é nesta situação que Ciro é observado pelo narrador de nossa história; ao perceber sua presença, em uma delicada passagem do narrador de terceira pessoa para primeira, o tio o percebe, lhe dá uma moeda e diz a ele, em voz baixa, que é hora de ir para casa.

Por intermédio da clientela, Ciro consegue o emprego de gráfico do jornal Cruzeiro do sul, no qual ganha menos, porém, se interessa mais pelo trabalho. Com emprego, Ciro volta a freqüentar lugares de cunho público maior, no caso, a Praça Coronel Fernando Prestes, na qual conhece Terezinha, uma filha de operários da Piedade, com que irá se casar; com 23 anos, ele descobre que a moça já foi amante de um homem casado, rico e avarento por demais.

Na rotina exaustiva de trabalho, Ciro se intoxica com antimônio; Terezinha é tuberculosa e precisa ficar internada em um sanatório, no qual as visitas que recebe de Ciro logo diminuem em número, tendo ele arranjado relações com outra mulher, Norma, uma garçonete ruiva e também com ligações com prostituição.

Ciro, tentado mover-se, sai do Cruzeiro do Sul, vai para a gráfica Gutierrez e compra uma impressora em São Paulo, paga em prestações, fato este que o impele a trabalhar ainda mais. Em 1951, quando sua mulher volta do sanatório, trabalham duramente juntos, com muitas encomendas para imprimir material de políticos; Era o período de Juscelino, chamado de nacional-desenvolvimentista. Ciro se encontra em seu melhor momento comercial.

Em 1960, Norma reaparece, culminando os fatos em acontecimento no fim do casamento de Ciro e na vinda do desquite. Ao perder o caminho de volta para o consciente e correto após a manifestação do que lhe fizeram suas marcas realistas, Norma mata o pai com facadas. Na sequência, Ciro conhece Anita, que será sua companheira até o final da vida e com quem terá seis filhos.

Anita , também de família pobre, depois de ter sido camareira, decidiu fazer o curso Normal, mas teve de contentar-se com o curso de corte e costura. Em 1970, foi operária nas fábricas de tecido em Sorocaba, vivendo a face do processo de modernização para a qual foi designada em pleno “milagre” brasileiro militar. Quanto a Ciro, em períodos de Jânio, Jango e Castelo Branco, encontra-se falido.

Parafraseando André Bueno, é interessante notar que em toda a vida de Ciro – que dura até 1990 – a movimentação física que foi permitida a ele e a outros muitos era apenas pendular – usando pendular com seu estrito sentido geográfico – e migratória, diferentemente do capital e das informações, que viajam de maneira rápida no contexto econômico mundial.

Nesta altura, o narrador assume novamente, em corte, a primeira pessoa no tempo presente, movimentando e ajustando o mosaico de seu caleidoscópio com contrastes entre o tempo presente, já citado, e o passado. O cenário atual, urbano, com muito barulho e com sua inerente feiúra, é caminho de passagem de caminhões de carga; com a ausência do tônus da fisicalidade de suas memórias, agregam-se ao mosaico as seguintes: Ciro e Ana, falidos, mudam-se para Terra Vermelha, periferia de Sorocaba. Anita trabalha como faxineira, enquanto Ciro, como carregador.

Fora do olho do furacão do surto modernizador – olho este que, apesar de não abrigar oxigênio, é o único componente do furacão no qual se encontra certa calmaria – Ciro realiza, com dificuldades enormes, o trabalho que, na época da fundação de São Paulo, era feito por burros de carga – avessos, contradições e mitos da modernização.

Em partes finais de Resumo de Ana, Anita, por falta ainda maior de dinheiro, procura uma antiga patroa e, juntamente com Ciro, tornam-se caseiros de uma Chácara.

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